Sobre morte e desertos

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Ela parecia tão forte e cheia de certezas, mas desmontou quando se deu conta que ainda não havia enterrado o pai que morrera há anos. Sentia-se sozinha num deserto. Quis ajudá-la, mas para ser um bom guia nessa travessia você precisa conhecê-la.
Percorri o deserto na morte do meu pai. Quando ele foi embora fiquei desamparada, com
sentimentos contraditórios e a garganta seca.
O luto tem temperaturas extremas. Raiva da morte, de Deus, do mundo escaldando os
sentidos. Solidão e saudade congelando os ossos na escuridão. Incertezas e miragens
assombrando a madrugada.
Meu pai foi consumido por um câncer. Por um bom tempo só me lembrava dele doente, fraco e dos últimos dias que foram muito dolorosos. Parece que a mente insiste em repetir aquele filminho de sofrimento em câmera lenta. A burocracia da morte com atestados de óbito e documentos cancelados atropela os primeiros dias. Desmontar a casa, distribuir os pertences: a vida inteira dele cabia em caixas recolhidas apressadas de um apartamento triste.
Por alguns meses pensava nele todos os dias. Mais que isso, revivi, editei e resgatei memórias, frases, fotos, histórias engraçadas. Esse é o lado que pode ser compartilhado do luto: essa colagem de fragmentos compõe um retrato novo que será guardado e dividido. Demorei para entender que nunca mais poderia tirar uma dúvida de matemática nem do ponto do arroz com lentilha. Briguei e fiz as pazes, ouvi a voz dele dando conselhos e broncas, vi nossas semelhanças na risada quase escandalosa e nas implicâncias.
Luto é passagem. É um momento de se despedir de quem foi e de retomar a vida numa
configuração diferente. Cada um tem seu tempo e muitos se perdem e vagam por anos presos ao passado. Eu tinha certeza que queria seguir a vida até porque sei que ele gostaria de me ver bem.
Ajudo as pessoas a atravessar o deserto. Encontro meus mortos em cada viagem que faço. Não digo que perdi meu pai, realoquei meu pai. Carrego ele para sempre comigo. O amor não acaba nunca. No fim da travessia me encontrei sendo parte dele e ele parte de mim. Os mortos sorriem em silêncio e o deserto fica em paz.
Cecília Attux

5 comentários

    1. Querida ” ratinho”, lindo e emocionante.

      Muito bom para mim tambem, ver algo tao bem feito e profundo. Entendo muito bem tudo que li. Voce sempre surpreendendo. Seu pai.ninguem esquece, as risadas, implicancias, os rabujos e as tiradas geniais. Ele marcou todos, principalmente a criançada da época.

      Bjs minha querida. Sou Fã do meu ” RATINHO”

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  1. Cecilia querida!
    Não tenho palavras que possam definir minha emoção…
    Senti uma saudade imensa do meu tio padrinho que sempre foi importante demais na minha vida…
    Conte sempre comigo minha prima!

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