Remendo

Chet Baker Performs Live In Amsterdam
(photo by Frans Schellekens/Redferns)

 

Remendo:

Tentativa de não perder, agarrar o passado, esforço vão de juntar o tempo, uma normalidade falsificada e fingida.

Miguel fuma um cigarro escutando a velha música que toca no novo rádio, ele observa o relógio que corre sem parar, o maldito não perde o fôlego, o relógio é uma das criaturas mais atentas já criadas. Miguel caminha até a mesa que está no canto da pequena sala e senta confortavelmente na sua insônia preferida, pelo chão muitas histórias desgastadas e rasgadas, retalhos de felicidades passageiras.

Histórias rasgadas, umas foram rasgadas pelo desgaste natural, outras pela intensa violência característica de algumas relações e as histórias que sobraram foram devoradas silenciosamente pelas traças famintas, no fim, o tempo tem fome de tudo.

Chet Baker despeja no ar “My Funny Valentine” (a única coisa inteira naquele apartamento).

A única certeza que Miguel tem às 3h38 da manhã é que alguém sem uma história de amor e alguém que beira a invisibilidade. Ele sente isso na pele, nas mensagens que não chegam mais e nos olhares  que fugiram dos olhos.

Miguel já não lembra como esses tecidos frágeis chamados histórias de amor foram rasgados, a memória não é a mesma e a culpa foi de quem? Quem é o dono da culpa, ele sempre ouviu que a culpa era sua e a culpa é uma herança maldita.

Pensou nos remendos, lembrou-se da infância e das suas calças jeans com várias cores diferentes nos joelhos, os joelhos rasgados eram comuns na sua infância, lembrou-se de sua mãe costurando pacientemente com um sorriso de sol pendurado no rosto marcante de 50 e poucos anos, as calças remendadas tornaram-se as favoritas de Miguel, talvez fosse um sinal, tudo em Miguel já foi ferida.

É uma pena que as histórias não possam ser remendadas, ficam as memórias pelo chão e a música pelo o ar.

Miguel se levanta e para em frente à janela, fica um tempo olhando a silenciosa cidade e as poucas janelas acesas, janelas que abrigam homens e mulheres tentando consertar aquilo que já não pode ser consertado.

Miguel sorri.

12 comentários

  1. “A única certeza que Miguel tem às 3h38 da manhã é que alguém sem uma história de amor e alguém que beira a invisibilidade. Ele sente isso na pele, nas mensagens que não chegam mais e nos olhares que fugiram dos olhos.”

    Essas madrugadas que nos fazem refletir e ter certezas tão profundas.

    Mais um excelente texto, belo escritor.

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  2. Pingback: duduxa1960

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